CANÇÃO DO SOLDADO OU CANÇÃO DO EXÉRCITO
Fibra de Herói
Há mais de um século, o Brasil não se envolve em guerra com seus vizinhos. A última foi a Guerra do Paraguai, entre 1864 e 1870. Morreram 60 mil brasileiros. De lá para cá, o Brasil, maior país em extensão territorial e população da América Latina, tem mantido relações pacíficas no continente. O Brasil hoje também não tem disputas de fronteiras. Isso contribuiu para firmar a imagem do continente como uma das regiões mais estáveis e desmilitarizadas do mundo. Segundo o Stockholm International Peace Research Institute (Sipri), Instituto sueco dedicado ao monitoramento de gastos militares, a América Latina é a região do mundo que dedica proporcionalmente menos recursos aos orçamentos de suas Forças Armadas – 1,4% do PIB regional.
Desde 2005, um elemento perturbador foi introduzido nesse quadro de relativa paz e tranqüilidade. O governo Hugo Chávez, na Venezuela, começou a fazer compras maciças de equipamentos militares. A primeira investida venezuelana foi a compra de 100 mil fuzis de assalto Kalashnikov AK-103 e AK-104, fabricados na Rússia. A partir daí, a Venezuela continuou a freqüentar com avidez e assiduidade o mercado de armas global. Acertou com a Espanha a encomenda de oito navios de guerra, parte de um negócio de 1,2 bilhão de euros. Na China, Chávez foi buscar radares móveis. O pacote de compras bélicas de Chávez inclui ainda helicópteros, submarinos, mísseis terra–ar. A aquisição mais valiosa foi feita em julho de 2006: 24 caças Sukhoi, de fabricação russa, aviões de guerra mais poderosos e modernos que qualquer outro hoje existente na América do Sul. De acordo com o último relatório do Sipri, a Venezuela, em 2006, pelo segundo ano consecutivo, foi o país da América do Sul que mais aumentou gastos militares: 20% em termos reais.
Chávez diz que está se armando para modernizar equipamentos obsoletos das Forças Armadas venezuelanas e para se preparar para um eventual ataque dos Estados Unidos, elevados à condição de Grande Satã pela retórica barulhenta do presidente da Venezuela. Chávez até cunhou uma doutrina militar – a “guerra assimétrica” – para fazer contraponto à doutrina de guerra preventiva do governo George W. Bush, nos EUA. Apesar das declarações de Chávez, há uma crescente inquietação no Brasil e em outros países sul-americanos quanto à escalada armamentista da Venezuela ter outros fins. Há duas semanas, Chávez disse que poderia transformar a Bolívia em um novo Vietnã, se a oposição boliviana tentasse derrubar seu aliado Evo Morales da Presidência.
Estamos diante de um fanfarrão ou de alguém que é preciso levar a sério por seu desejo expresso de se perpetuar no poder? Chávez é um militar que, antes de vencer eleições, tentou assumir o governo na Venezuela por um golpe. Tenente-coronel reformado do Exército, Chávez ainda usa adereços militares em suas campanhas políticas. Em comícios, costuma aparecer com uma boina vermelha usada por pára-quedistas. Seus seguidores políticos gostam de usar a boina vermelha, transformada em símbolo do chavismo. Os sinais do militarismo do regime chavista aparecem também na formação das milícias bolivarianas, grupos de civis que apóiam seu regime. Chávez apresenta-se como católico, ora cita Deus, ora o Diabo. Em discurso na ONU em 2006, ao ocupar o púlpito em que Bush estivera no dia anterior, disse ainda sentir cheiro de enxofre. Aproximou-se de figuras controversas, como o iraniano Mahmoud Ahmadinejad, o russo Vladimir Putin, de quem compra armas, e Fidel Castro, para quem chegou a cantar em sua visita mais recente a Havana, no período de convalescença do ditador cubano.
Aos 53 anos, é casado pela segunda vez e tem quatro filhos. Na juventude, Chávez foi jogador amador de beisebol. Até hoje, gosta de aparecer na TV com trajes esportivos e tacos de beisebol. Em 1999, pouco depois de assumir o governo, mandou criar e publicar uma história em quadrinhos em que o herói usava boina, bastão de beisebol e resolvia todos os problemas da Venezuela – uma óbvia referência a si próprio. Os oficiais das Forças Armadas que ousam desafiá-lo costumam ser mandados para a reserva ou para a prisão.
Chávez cunhou uma doutrina militar, a “guerra assimétrica”, para fazer contraponto à doutrina de guerra preventiva do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush |
Seu projeto é implantar o “socialismo do século XXI”. O próximo passo seria irradiar sua “revolução bolivariana” pela América Latina. O Orçamento da Venezuela para 2008 prevê gastos de US$ 193 milhões para “fortalecer movimentos alternativos na América Central e no México e assim se desatrelar do domínio imperial” dos EUA. Na semana passada, o jornal Correio Braziliense revelou que o venezuelano Maximilian Arvelaiz, homem de confiança de Chávez, percorre há quase um mês capitais brasileiras com a missão de organizar a primeira Assembléia Bolivariana do Brasil, em dezembro, no Rio de Janeiro. O estatuto do movimento prevê a construção de “um poder popular” e a formação de “uma federação socialista latino-americana”. Para apoiar Arvelaiz, Chávez enviou mais 15 diplomatas à embaixada e a consulados em Brasília, sob o pretexto de que se trata de um reforço nas relações bilaterais.
No Brasil, as ações e o discurso de Chávez, no início ignorados, começam a repercutir mal. “A hipótese de uma corrida armamentista na América do Sul parece estar-se concretizando, tendo em vista os gastos de mais US$ 4 bilhões da Venezuela nos últimos dois anos e as indicações de que Chávez continuará a investir em material bélico”, disse a ÉPOCA o ex-presidente da República e senador José Sarney (PMDB-AP). “Nosso país é um tradicional defensor da solução pacífica das controvérsias e uma corrida armamentista seria inaceitável para o Brasil.”
Isso não quer dizer que o Brasil esteja parado. De acordo com oficiais do Exército brasileiro, o investimento em equipamento das Forças Armadas em 2008 será o maior desde o fim do período militar. Marinha, Exército e Aeronáutica terão a sua disposição o mais alto orçamento dos últimos 12 anos para comprar e renovar equipamentos bélicos. Esses gastos, segundo o projeto de lei orçamentária enviado ao Congresso, serão de R$ 9,1 bilhões, e podem chegar a R$ 10,1 bilhões. O aumento é de quase 50% em relação aos R$ 6,9 bilhões deste ano.
REAÇÃO?O presidente Lula passa em revista a tropa brasileira no Haiti. O governo brasileiro vai aumentar em 50% o gasto militar em 2008 |
O governo Lula anunciou outras medidas para aumentar o aparato bélico brasileiro. O programa de construção do submarino nuclear pela Marinha, que se arrasta desde 1979, deverá receber, a partir de 2008, R$ 130 milhões por ano. O objetivo é que o submarino fique pronto em uma década. O governo passou também a considerar prioritária a retomada do programa FX de aquisição de 12 caças modernos para a Força Aérea Brasileira. Estuda-se a alocação de R$ 2 bilhões para o programa.
Em 2003, pouco depois de chegar ao Palácio do Planalto, o presidente Lula suspendeu a compra desses mesmos caças, sob a alegação de que prioritário era o Programa Fome Zero. A política industrial que s o governo promete apresentar nos próximos dias prevê incentivos para fortalecer a indústria bélica nacional. Detalhes ainda não foram divulgados, mas é certa a liberação de financiamentos especiais do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). “Fico imaginando o que pode atrapalhar o nosso país. Apenas a nossa omissão e apenas a nossa submissão. Está na hora de construir o PAC das nossas Forças Armadas, da nossa Defesa”, afirmou o presidente Lula em setembro.
Estamos mesmo no limiar de uma corrida armamentista na América do Sul, desencadeada por Chávez e à qual o Brasil aderiu para não ficar para trás? O governo Lula nega oficialmente que os aumentos dos gastos militares sejam uma reação a Chávez. A elevação do orçamento militar, diz o governo, é uma resposta ao sucateamento das Forças Armadas, que não recebem investimentos para modernização há quase duas décadas. “Essa é uma discussão que acompanho há dez anos e digo que não há relação entre a decisão do governo de voltar a investir nas Forças Armadas com as decisões de Chávez”, afirma o deputado José Genoíno (PT-SP), uma espécie de porta-voz do PT para assuntos militares. Mesmo assim, dois ministros e um governador de Estado afirmaram a ÉPOCA que, em foro reservado, Lula diz se preocupar com o fator Chávez na América Latina.
Isso não quer dizer que vivamos uma corrida armamentista no continente. Em artigo publicado pelo Observatório Político Sul-Americano, departamento de pesquisa do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), o cientista político Rafael Villa diz que as compras de armas por Chávez visam obter apoio interno para seu regime na Venezuela, que tem nos militares um de seus principais sustentáculos políticos. “Faz-se certo alarmismo em torno de uma corrida armamentista na América do Sul, por causa da retórica de Chávez, mas o que está acontecendo no Brasil e em outros países da região é uma modernização de equipamento bélico obsoleto, por causa da queda dos níveis de investimento militar desde os anos 90”, diz a colombiana Catalina Perdomo, pesquisadora do Sipri. “É um exagero falar em corrida armamentista, porque o orçamento de defesa do Brasil, além de pequeno, é desequilibrado. Há uma enorme parcela de gastos dirigida ao pagamento de salários e pensões”, diz Mark Stocker, economista especializado em defesa do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, de Londres.
Segundo estimativas de 2004, o Brasil destinava 70% do orçamento do Ministério da Defesa para gastos com pessoal e apenas 2,88% para reequipamento militar. A deterioração do equipamento militar brasileiro tem causas também políticas. Está relacionada a uma perda de prestígio das Forças Armadas após a redemocratização do país. Elas teriam sido relegadas nos últimos anos a um “ponto de desleixo”, segundo o coronel da reserva Geraldo Cavagnari, do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade de Campinas (Unicamp).
O Brasil em guerra | |
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As Forças Armadas brasileiras se envolveram em poucos conflitos desde sua criação. A única grande guerra que o Brasil enfrentou com seus vizinhos na América do Sul foi a Guerra do Paraguai (1864-1870). Desde a Segunda Guerra Mundial, o Brasil participa apenas de missões de paz de organismos internacionais | |
Guerra Cisplatina Em abril de 1825, Brasil e Argentina entram em guerra pelo domínio brasileiro na província Cisplatina. O conflito termina três anos depois, com a mediação da Inglaterra. A antiga Cisplatina se torna um país independente, o Uruguai. A derrota abala a imagem do imperador dom Pedro I e é decisiva para sua abdicação, em 1831 | |
Guerra do Paraguai Entre 1864 e 1870, Brasil, Uruguai e Argentina combateram o Paraguai na guerra mais sangrenta da América Latina, que matou mais de 150 mil pessoas. O imperador dom Pedro II comandou pessoalmente as Forças brasileiras, que eram pobres e mal preparadas. A guerra colaborou para o fim da monarquia quase 20 anos depois | |
Segunda Guerra Mundial O Brasil entra na guerra em 1944, depois que navios foram afundados pelos submarinos alemães. Cerca de 25 mil militares brasileiros lutaram na Itália e ajudaram a vencer as forças nazistas |
Missões de paz | |
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Desde a Segunda Guerra Mundial, as Forças Armadas brasileiras não se envolvem em conflitos. Elas já participaram de 28 forças de paz de organismos internacionais, com batalhões de soldados ou apenas observadores. Em algumas, soldados brasileiros entraram em combate. Hoje o Brasil participa de outras 15 missões de paz | |
Suez Em sua primeira participação em missões de paz, o Brasil manteve 600 militares na região do Canal de Suez entre 1957 e 1967. O objetivo era acabar com o conflito entre egípcios e israelenses. Tudo fracassou em 1967, quando Israel deflagrou a ofensiva conhecida como Guerra dos Seis Dias, em que venceu seus adversários árabes | |
República DominicanaEm 1965, um batalhão do Exército e um grupamento de Fuzileiros Navais estiveram na República Dominicana a serviço da Organização dos Estados Americanos (OEA) para pacificar o país após a derrubada do governo de Rafael Trujillo pelos Estados Unidos | |
AngolaEntre 1995 e 1997, as Forças Armadas brasileiras mantiveram mais de 1.000 soldados nas forças de paz em Angola, para colaborar na pacificação do país após a guerra civil e na organização de um novo governo | |
Haiti Com cerca de 1.200 homens no país desde 2002, o Brasil lidera uma força de paz da ONU para manter a paz no Haiti. Desde sua chegada, as tropas brasileiras conseguiram reduzir a ação de gangues nas favelas de Porto Príncipe |
As armas de Brasil e Venezuela |
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O arsenal brasileiro é maior, mas os venezuelanos estão comprando equipamento mais moderno e sofisticado |
Fontes: Aldo Pereira e Military Power Review |
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