Vergonha, quem deveria seguir a constituição por ser um orgão do governo vive descumprindo.
Auxílio-doença: ilegalidade da fixação de prazo para recuperação da capacidade de trabalho
Eduardo Chamecki *
O Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, em diversos casos, ao implantar benefício de auxílio-doença, fixa, a partir de previsão do tempo para recuperação da capacidade de trabalho estimado pelo médico-perito responsável pelo exame, prazo para pagamento da prestação previdenciária. Na data pré-fixada, caso não haja requerimento da parte em sentido contrário, efetua o cancelamento do benefício sem a realização de nova perícia que, de fato, ateste a recuperação da capacidade de trabalho.
A concessão do benefício com previsão de alta programada encontra suposto respaldo no art. 78, § 1º, do Regulamento da Previdência Social (aprovado pelo Decreto 3.048/99, com redação dada pelo Decreto 5.844/2006), que dispõe: “O INSS poderá estabelecer, mediante avaliação médico-pericial, o prazo que entender suficiente para a recuperação da capacidade para o trabalho do segurado, dispensada nessa hipótese a realização de nova perícia.”
Essa regra, todavia, revela-se ilegal. Ao inovar originariamente a ordem jurídica, inclusive de encontro às disposições da lei regulamentada (Lei 8.213/91), exorbita sua função meramente regulamentar (art. 84, inciso IV, da Constituição Federal), que se limita a proporcionar a fiel execução das leis por meio de um aclaramento de seus preceitos, orientando a sua aplicação, sem jamais estender ou restringir as prescrições contidas na norma jurídica que regulamenta.
Com fundamento no art. 59, da Lei 8.213/91, o segurado faz jus ao auxílio-doença se, havendo cumprido, quando for o caso, o período de carência exigido na lei, ficar incapacitado para o seu trabalho ou para a sua atividade habitual por mais de 15 dias consecutivos. Por sua vez, o art. 62, da Lei 8.213/91, prevê que: “O segurado em gozo de auxílio-doença, insusceptível de recuperação para sua atividade habitual, deverá submeter-se a processo de reabilitação profissional para o exercício de outra atividade. Não cessará o benefício até que seja dado como habilitado para o desempenho de nova atividade que lhe garanta a subsistência ou, quando considerado não-recuperável, for aposentado por invalidez.”
A implantação do benefício com data de cancelamento pré-fixado não permite a efetiva aferição da capacidade de retorno ao trabalho, contrariando a norma do art. 62, da Lei 8.213/91. A medicina não é uma ciência exata que permita ao médico antever com segurança que, em prazo determinado, a patologia que comprometeu a capacidade de trabalho do segurado estará curada, ou que estará apto a retornar às suas atividades habituais.
Em assim procedendo, cria-se a possibilidade de, não progredindo o tratamento com os resultados esperados, submeter o trabalhador ao risco de retornar à atividade sem condições para tanto, comprometendo sua saúde e recuperação, e colocando em risco até mesmo as demais pessoas que dependam da atividade econômica que vier a exercer.
Ademais, se o art. 101, da Lei 8.213/91 prevê a necessidade do segurado em gozo de auxílio-doença submeter-se a exames médicos periódicos a cargo da Previdência Social para manutenção do benefício, do que por decorrência lógica se infere a necessidade de sua realização para averiguação da manutenção ou não da situação de incapacidade, não é plausível admitir sua dispensa para fins de cancelamento da prestação.
A título de ilustração, observem-se as ementas de recentes julgados do TRF da 4ª Região que ilustram o posicionamento jurisprudencial sobre o tema:
PREVIDENCIÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. AUXÍLIO-DOENÇA. ALTA MÉDICA PROGRAMADA. SUA FIXAÇÃO INDEPENDENTEMENTE DE PERÍCIA. Se, à luz do disposto no art. 101 da Lei n.º 8.213/91, o segurado em gozo de auxílio-doença é obrigado a submeter-se a exame médico a cargo da Previdência Social, isto significa que o aludido exame é necessário para averigüar-se se ele está ou não em condições de retornar ao trabalho. Logo, não se pode presumir a recuperação de sua capacidade laborativa, pura e simplesmente em razão do decurso de determinado prazo. (TRF da 4ª Região, AC n. 2006.70.00.017889-9, 6ª Turma, Rel. Des. Sebastião Ogê Muniz, j. 02/05/2007, DJ 18/05/2007 – sem grifo no original).
PREVIDENCIÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. RESTABELECIMENTO DE BENEFÍCIO. AUXÍLIO-DOENÇA. ALTA PROGRAMADA. AUSÊNCIA DE PERÍCIA MÉDICA. ILEGALIDADE.É incompatível com a lei previdenciária a adoção, em casos semelhantes ao ora analisado, do procedimento da “alta programada”, tendo em vista que fere direito subjetivo do segurado de ver sua capacidade laborativa aferida através do meio idôneo a tal fim, que é a perícia médica. (TRF da 4ª Região, AC n. 2006.70.00.010597-5, Turma Suplementar, Rel. Des. Luciane Amaral Correa Minch, j. 28.02.2007, DJ 19/04/2007 – sem grifo no original).
Desse modo, caso o benefício seja cancelado sem a realização de exame-médico que ateste a cessação da incapacidade, ou que indique a exigência de encaminhamento para processo de reabilitação, o segurado pode ingressar com ação judicial para solicitar o restabelecimento do auxílio-doença.
A ilegalidade da alta programada no auxílio-doença
De acordo com orientações do INSS, disponíveis para consulta no site dessa autarquia, o auxílio-doença é um benefício concedido ao segurado impedido de trabalhar por doença ou acidente por mais de 15 dias consecutivos. No caso dos trabalhadores com carteira assinada, os primeiros 15 dias são pagos pelo empregador, e a Previdência Social paga a partir do 16º dia de afastamento do trabalho. No caso do contribuinte individual (empresário, profissionais liberais, trabalhadores por conta própria, entre outros), a Previdência paga todo o período da doença ou do acidente (desde que o trabalhador tenha requerido o benefício).
Assim, para ter direito ao benefício, o trabalhador tem de contribuir para a Previdência Social por, no mínimo, 12 meses. Esse prazo não será exigido em caso de acidente de qualquer natureza (por acidente de trabalho ou fora do trabalho). Para concessão de auxílio-doença é necessária a comprovação da incapacidade em exame realizado pela perícia médica da Previdência Social.
Terá direito ao benefício, sem a necessidade de cumprir o prazo mínimo de contribuição, a pessoa que tenha qualidade de segurado, o trabalhador acometido de tuberculose ativa, hanseníase, alienação mental, neoplasia maligna, cegueira, paralisia irreversível e incapacitante, cardiopatia grave, doença de Parkinson, espondiloartrose anquilosante, nefropatia grave, doença de Paget (osteíte deformante) em estágio avançado, síndrome da deficiência imunológica adquirida (Aids) ou contaminado por radiação (comprovada em laudo médico).
O trabalhador que recebe auxílio-doença é obrigado a realizar exame médico periódico e participar do programa de reabilitação profissional prescrito e custeado pela Previdência Social, sob pena de ter o benefício suspenso, ou seja, o INSS mantém serviços que tem o objetivo de oferecer, aos segurados incapacitados para o trabalho (por motivo de doença ou acidente), os meios de reeducação ou readaptação profissional para o seu retorno ao mercado de trabalho.
Não tem direito ao auxílio-doença quem, ao se filiar à Previdência Social, já tiver doença ou lesão que geraria o benefício, a não ser quando a incapacidade resulta do agravamento da enfermidade.
O auxílio-doença deixa de ser pago quando o segurado recupera a capacidade e retorna ao trabalho ou quando o benefício se transforma em aposentadoria por invalidez.
Alta programada no Auxílio-doença
Até agosto de 2005, o benefício auxílio-doença era concedido por prazo indeterminado, ou seja, o benefício seria devido enquanto houvesse a incapacidade que lhe deu origem. Contudo, o segurado deveria fazer perícia médica regularmente, ou seja, a cada dois meses os médicos peritos do Instituto Nacional do Seguro Social averiguariam se ainda existia ou não a incapacidade do segurado para o trabalho.
Entretanto, a partir de agosto de 2005 esse procedimento foi modificado. Após essa data o benefício passou a ser concedido por tempo determinado, ou seja, o médico fixa a data de encerramento do benefício, estabelecendo o tempo necessário para a recuperação. Esse novo procedimento é chamado de alta programada ou data certa.
Assim, na data certa, o computador devidamente programado avisa que determinado segurado, até então doente, deve receber alta. A justificativa nada tem que ver com a doença. Trata-se, mais propriamente, de reduzir custos com a manutenção do beneficio do auxílio-doença. Expirado o prazo que foi dado pela autarquia, o segurado é orientado para retornar dentro de 30 dias. Nesse período, pode ocorrer sua demissão, mas o problema não é do INSS.
Os motivos alegados para adoção dessa técnica foram: 1) redução do déficit, sob o fundamento de que cresceu o número de benefícios de auxílio-doença. 2) evitar que o segurado retorne a cada dois meses para nova perícia, sobrecarregando o INSS. Assim, o segurado considerado incapacitado temporariamente vai receber o benefício por um período determinado pelo médico perito como suficiente para a recuperação. Ao final do prazo, o pagamento será suspenso. O segurado que não se considerar pronto para voltar ao trabalho, mesmo após o prazo, terá de marcar nova perícia para continuar recebendo o auxílio-doença.
Com essa alteração, ficam os segurados em uma situação ainda mais vulnerável, já que ao final do prazo de "cura" estipulado pelo médico perito do INSS deverão retornar ao trabalho independentemente da situação em que se encontrem, devendo fazer outro requerimento. O sistema, com certeza, estará dificultando o recebimento de um benefício do segurado; benefício esse ligado ao direito à saúde, à vida e à dignidade da pessoa humana.
Contudo, não é possível, um médico, estipular com precisão a data em que o segurado estará apto a retornar à atividade que habitualmente exercia. Logo, findo o prazo do auxílio-doença, o segurado deverá retornar às suas atividades.
Questões Jurídicas
O ato administrativo do INSS que estabelece a Alta Programada é ilegal e inconstitucional, pois contraria não só a Lei 8.213/91, mas também a Constituição Federal que estabelece as garantias de prevalência à vida, à saúde e a incolumidade física e mental de todos e em especial da classe trabalhadora.
Mas qual dispositivo constitucional é violado pela criação da Alta Programada? O primeiro é o Art. 196 que diz: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
A Alta Programada quebra o elemento proteção e recuperação, pois o benefício é cortado abruptamente, inclusive sem a realização de perícia médica, ou seja, o INSS diz com exatidão o dia que o benefício irá cessar, independentemente da cura do segurado.
Outra questão que surge neste caso é a possibilidade de uma Orientação Interna do INSS estabelecer a técnica da Alta Programada, ou seja, essa Orientação tem poder para inibir um direito do trabalhador? A resposta lógica é não, inclusive, o governo federal, diante das decisões do Poder Judiciário de declarar nula e ineficaz a prática reiterada de Alta Programada, transformou a Orientação Interna em um decreto: Decreto 5.844, procurando dar legalidade ao regulamento interno do INSS e visando manter o procedimento de concessão de alta programada, agora sobre outra denominação: DCB — Data de Cessação do Benefício.
Portanto, o Decreto 5.844 é ilegal e inconstitucional, pois restringe e inibe um direito do trabalhador, ou seja, a Alta Programada corta o benefício antes da recuperação do segurado. Benefício que é garantido pela lei e para o qual o trabalhador teve que contribuir. Logo, esse decreto em nada modifica a situação de ilegalidade já reconhecida pelo Poder Judiciário, evidenciando-se a nítida intenção do governo em negar vigência à Lei 8.213/91 que não permite Alta Programada enquanto persistir a incapacitação que motivou a concessão do benefício.
Percebe-se claramente que o cidadão que possui conhecimento e recursos não irá se sujeitar à ilegalidade e arbitrariedade do INSS. Certamente, vai buscar e obter a tutela judicial, protegendo assim o seu direito. Mas e o cidadão que não tem conhecimento e nem recursos para pagar um advogado, ou seja, a maioria dos segurados do INSS, o que acontecerá com eles? Acontecerá exatamente o que está acontecendo hoje, ou seja, mesmo sendo um procedimento ilegal e inconstitucional, a alta programada continua valendo e sendo aplicada.
Essa é mais uma faceta do capitalismo globalizado e da deterioração da ética. Características essas que contaminaram, inclusive, as instituições e os serviços públicos. Características que mostram que estamos afundando num mar de banalidades, onde o homem e a dignidade humana se tornam cada vez mais irrelevantes e insignificantes.
E a grande ironia do sistema é que tudo isso acontece justamente na área que tem por finalidade principal a proteção dos cidadãos hipossuficientes contra os riscos sociais. Deveriam criar um benefício que protege/indeniza os cidadãos hipossuficientes vitimados por atos arbitrários e ilegais do Estado.
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