A Ética Médica e a Verdade do Paciente
Dalgimar Beserra de Menezes
Existe, por certo, um abismo muito largo e profundo entre a cosmovisão dos médicos em geral (fundada em sua leitura dos fenômenos biológicos) e as concepções de vida da vasta maioria da população. Salta à vista, na abordagem do assunto (a ética e a verdade do paciente), que se fica, mais uma vez, diante da pergunta feita por Pôncio Pilatos a Jesus Cristo, encarando, como estava, um homem pleno de sua verdade, portanto de uma determinada sorte de verdade; Pilatos, pois, perguntou: "O que é a verdade?" E é evidente que um e outro detinham e se cingiam a verdades dispares.
No Brasil moderno, ou modernoso, os meios de comunicação, criadores da opinião pública, tendem a expandir mais ainda esse abismo, ao embaralharem fatos do domínio da ciência médica ou pervertê-los. Recentemente, em Fortaleza, aldeia do autor, uma emissora de televisão apresentou um anencéfalo, ao lado do Baby-Sauro, para mostrar a semelhança entre eles, ao mesmo tempo em que o pai do monstro dava entrevista inculpando a mãe, sua esposa, pelo fenômeno, em virtude de ela ter exibido, durante a prenhez, um exacerbado bem querer pelo monstrinho da mídia. De outra forma, programas pseudocientíficos introduzem no seio da população técnicas e procedimentos de Primeiro Mundo, criando falsas esperanças e expectativas, inseridas na confusão que se estabelece entre a possibilidade de informação e o real acesso ao objeto da informação, que é uma das tragédias do subdesenvolvimento.
Ainda no plano da formação de opinião, a imprensa, por ideologia ou qualquer outra coisa, inclusive ignorância, confunde e mistura fatos que são perfeitamente separáveis, como erro medico e insucesso terapêutico, condicionando o surgimento de uma definida atitude de prevenção contra o médico.
O médico aprende na escola de medicina as suas verdades, embasadas cada vez mais no método cientifico - criação de Galileu Galilei, trazido ao âmbito da medicina por Claude Bernard, as quais são, trocando em miúdos, aproximações da verdade ou simples modelos consideráveis,no momento, como verdadeiros, que podem vir a sofrer mudanças de detalhes, substanciais ou totais. Recorde-se que, há cerca de meio século, irradiava-se o timo das crianças, por aumentado de volume, como se doente, quando na verdade era normal e que tal prática fez aumentar o risco de câncer da tireóide, após um período médio de latência de vinte anos. E tantas outras coisas!
Esses modelos ou aproximações da verdade são encarados como peças neutras, válidas aqui e alhures (cá e na China), e nos seus mais variados aspectos (propedêuticos e terapêuticas, inclusive) descuram quase que completamente do social. Como conseqüência, a sua aplicação prática não leva em consideração a escolaridade do paciente, nem os seus hábitos, costumes, credos, crenças, religiões etc.
Em assim sendo, a utilização desse corpo de conhecimentos poderá escandalizar, chocar ou simplesmente perturbar o paciente que o não conceba ou que vá de encontro ao seu sistema de vida, isto é, de crenças e concepções que constituem, em última análise, a sua verdade mais entranhada, fruto de aprendizado, educação ou adesão.
Nada mais oportuno nesse confronto do que lembrar o aforismo áureo da Escola Hipocrática, para estabelecer que a prática médica não é a mera instrumentalização do fato científico, universal, neutro e frio: primeiramente não causa dano. A prática médica, nesse contexto, vai além do corpo de conhecimentos da ciência exata ou biológica e observa - ou deverá observar - verdades do domínio das ciências sociais.
Por outro lado, existem verdades científicas que se sobrepõem às sociais, ao que parece, em definitivo. Em frente de uma comunidade que se insurja contra o uso de uma vacina, por exemplo, reconhecidamente benéfica, como ocorreu no Rio de Janeiro, no inicio do século - não interessando as causas, haja manipulações políticas ou outras -, o médico passa a fazer parte do esforço do Estado para a aplicação de tal medida preventiva. Está ai em jogo a saúde do todo, ao que consta um bem maior do que a saúde da parte. O médico, então, como que se identifica ao Estado e impõe suas regras, como o doutor Stockmann em O Inimigo do Povo, de Ibsen. Duas coisas, entretanto, parecem óbvias: deve-se respeitar aquele que, individualmente, não possa ser persuadido a se submeter ao procedimento, por motivos os mais diversos, e o sobredito perde forçosamente validade nos estados totalitários que podem deter verdades espúrias, pretextadas para o bem-estar e o beneficio do todo, e, em verdade, destinadas a privilegiar classe, casta ou raça.
O discurso do beneficio do todo, pela utilização ou "sacrifício" da parte, tem ainda outros desenvolvimentos. Diderot, um dos pais da Revolução Francesa, preconizava a vivissecção em animal nobre - condenados e facínoras - visando ao aumento do conhecimento científico da humanidade, o que é um absurdo. No entanto, a prática foi adotada durante a Segunda Guerra Mundial, vitimando não celerados, mas indivíduos em tudo normais. Já não se cogitam tais monstruosidades, contudo há de se questionar, sempre, em termos de uma moral abstrata, a validade do uso do indivíduo, com o fito de se melhorar a comunidade. Mulheres latino-americanas foram cobaias nos experimentas com contraceptivos, e prisioneiros e outros têm-nos sido nos testes de novas drogas e de outros procedimentos. Alega-se consentimento, comutam-se penas, oferece-se dinheiro. Na verdade, o grande problema é que não pode consentir quem não tem plena cidadania ou quem tem a liberdade cerceada, por mais que se edulcore a pílula e se contemple a verdade existencial pouco invejável desses seres. Não têm autonomia de volição ou de movimento os que não têm plena cidadania ou que estão presas.
Num pais de flagrantes contrastes sociais, em que há cada vez mais nitidamente uma medicina para os pobres e outra para os ricos, deve-se temer esse tipo de desenvolvimento. Consta que, na já decantada aldeia do autor, um pobre cedeu um rim a um rico, em troca de bens de fortuna; o pobre foi atendido em sua verdade econômica, pobreza. E subiu na escala social. Os médicos implicados no episódio perceberam gordos honorários, postos acima do bem e do mal, super-homens. Todas as partes foram agraciadas e quedaram satisfeitos, a despeito de a lei vedar ao compadre pobre a venda de seu órgão ao compadre rico.
Poder-se-ia imaginar que o trato com o paciente implicasse uma moral prática, ou seja, além de não prejudicar, o médico poderia lançar mão de atitudes consideráveis como úteis e, portanto, boas, verdadeiras, conformando-se a uma espécie de pragmatismo. Todavia, o simples pragmatismo pode se constituir em prática distorcida e condenável, manancial de erros e equivocas. Como exemplo, tome-se em consideração a verdade das pacientes quanto ao uso de métodos contraceptivos e anticoncepcionais. Movidas pelas necessidades imediatas, sobretudo as dificuldades financeiras, passa a ser a verdade qualquer medida que se lhes ofereça, sem qualquer senso crítico ou avaliação de conseqüências futuras. O útil e o imediato ganham foros de verdade, gerando-se, ao mesmo tempo, aberrações medonhas no campo da ética médica. O médico, na falta de uma regulamentação moderna e adequada ao momento histórico, de leis, por conseguinte, não só se sente no dever de executar tais métodos, indiscriminadamente - seja exemplo a laqueadura tubária -, como também os utiliza para usufrutos seus os mais variados, designadamente os econômicos e os políticos. São incontáveis as laqueaduras tubárias feitas neste ano eleitoral de 1992, no país inteiro. E quando se descobre a taxa de 90% de apendicectomias brancas, de uma determinada cidade do interior, mister é inferir-se que a laqueadura foi perpetrada, e como não pode ser cobrada, seguida de uma cirurgia desnecessária - a apendicectomia -, houve ganho de uma eleitora, pelo menos, e foi cobrada ao SUS a cirurgia despropositada.
Subentendida fica a idéia de que a cirurgia foi executada (a laqueadura) sob pretexto de atender a uma necessidade vital e ingente das pacientes, e muitos dos que realizam tal desserviço se tomam de justificativas que soariam até integrantes da moralidade cristã, visto que mantêm que a efetuam por pena e compaixão, quando se lhes são perfeitamente conhecidas as verdadeiras intenções.
No caso em pauta, há hipocrisia da parte do médico, quando não cinismo, emoldurados nessa abordagem piedosa e compassiva. Porém há também uma verdade das pacientes, traduzida em termos de não quererem ter filhos por não poder sustentá-los, situação, todavia, cuja solução escapa grandemente ao âmbito da atividade médica. De uma coisa pode-se estar seguro: a verdade das pacientes, nessas circunstancias, não pode ser tomada em conta e atendê-la é certamente uma aberração. As que a detêm, detêm-na por necessitadas e carentes, e são pessoas desprovidas de cidadania plena, que não podem decidir o que é bom ou ruim para si mesmas. Além do mais, atender a essa verdade (realidade) é atitude de poder, poder-ilícito, de quem está numa posição social alta e impõe sua vontade.
Situação análoga, em termos de poder ou não decidir, é a do paciente com enfermidade incurável, sujeito a dores que considera insuportáveis e que se vê competido a solicitar ao médico a morte para alívio definitivo do seu sofrimento. Embora a verdade do paciente seja "a dor insuportável", nenhum médico tem o direito de "obedecer" ao pedido de eliminação, e, se assim proceder, comete homicídio, ao que tudo indica. O que e clássico e moral consiste em usar de todos os meios para suavizar a dor (sedare dolorem...).
A atitude ética, depreende-se, vai muito além do pragmatismo (ou utilitarismo), que exibe essa máscara bondosa e implica (e esconde) amiúde intenções perversas.
De outra forma, nesse mesmo terreno, atente-se para a atitude do médico face à verdade das Testemunhas de Jeová. Do ponto de vista singelamente científico, tais crentes, como não são vegetarianos, tomam sangue todos os dias ao ingerirem tecidos musculares (carnes) e outros, às refeições. Não obstante, encrencaram com o sangue que o médico muita vez vê-se obrigado a utilizar em tratamentos cirúrgicos e outros procedimentos. Zombar, simplesmente, da postura deles parece atentatório aos direitos humanos, posição de poder, o poder desmistificador da ciência; enganá-los parece não somente atentatório, mas também imoral. Como, pois, atuar, nessas ocasiões, em que a verdade do paciente precisa ser devidamente levada em consideração?
Dois pontos parecem vitais nessa questão: em primeiro lugar, o bom senso; em segundo, a exposição dos atos perpetrados. O bom senso exige que se respeite a decisão (vontade, verdade) do paciente, que neste caso é a recusa ao sangue (hemofilia). E que se lhe respeite até não mais poder. Em não mais podendo respeitá-la, que se utilize sangue, por necessário, obedecendo à legislação do país, que é mais importante do que as regras e as indignações de seitas religiosas e de minorias. Dessarte, na situação emergencial de uma atitude não tomada poder configurar omissão de socorro, entende-se que não pode haver vacilação. E, fato consumado, que se diga ao paciente e a seus responsáveis que o sangue foi administrado, como medida salvadora. Os religiosos se animam na expectativa de ganhar o paraíso, mas, pelo geral, não querem tão cedo migrar desta para a outra, atitude muito semelhante a de qualquer execrando ateu. Se houver alguma dificuldade legal, depois, a lei respaldará o medico, mesmo levando-se em conta a temporada de caça que se estabeleceu contra ele nos últimos tempos, no Brasil.
Pelo exposto, atitudes consideradas como éticas não podem se alinhar, muitas vezes, ao que é prático e útil, assim como não podem, ao mesmo tempo, ser convertidas às verdades do paciente, sob pena, inclusive, de infração de leis vigentes.
Reflui o velho aforismo - primum non nocere - assentado no bom senso. E diante de tudo isso, deve-se perguntar o que viria exatamente a ser não causar dano, não prejudicar, apriorismo do exercício da profissão. Talvez seja assumir diante do paciente, independentemente de seu estrato social e de seus costumes e crenças, uma posição de humildade das possibilidades da ciência de que se dispõe, e de critica das possibilidades dessa ciência, nas imbricações dela, ciência, com o estrato social, o status, os costumes etc., sem latim ou grego, sem jargão enfatuado ou dialeto, id est compreensível e inteligivelmente, e dessa forma, torna-se ele próprio, médico, o paciente que se lhe entrega, numa espécie de identificação na humanidade comum a todos (ou seja: "Médico, cura-te a ti mesmo").
E corrente a afirmação de que muitos pacientes não querem saber a verdade de sua doença, quando grave, ou que procuram de toda maneira se enganar. Acredita-se que o médico não deva ser cúmplice dessa tendência, salvo se a verdade preferida dos fatos for mais deletéria do que a sua exclusão. Outra forma de dizer seria, talvez: salvo se a verdade revelada dos fatos for mais prejudicial do que a própria afecção de que e portador o paciente. Desemboca-se por outra vertente no velho aforismo. Na prática, apesar do propalado caráter emocional latino, faz-se cena ou drama; porém, é provável que, na maioria das vezes, prefira-se a verdade ao engodo. Ademais, a mentira piedosa, o engodo ou a não verdade podem ate redundar em escândalo, em atitudes ainda mais dramáticas, ou se revestirem de implicações de ordem legal. Em Fortaleza, para tomar novamente como base a aldeia do autor, ao modo de Miss Marple, um renomado médico sofreu os maiores constrangimentos, no momento em que seus pacientes aidéticos tiveram conhecimento de que estavam sendo tratados para AIDS, sem lhes serem revelados os diagnósticos. Não se julga a intenção de quem assim agia, no entanto, fica claro: os pacientes precisam saber dos males de que estão acometidos. E, como se diz, o caminho do inferno está, não raras vezes, pavimentado das melhores intenções.
Nestes casos, admite-se, a verdade conhecida do médico deve se constituir também na verdade do paciente. Ele tem todo o direito de saber de seu diagnóstico, do prognóstico, de suas chances de sobrevida, de tudo o que se relaciona à sua enfermidade.
Apesar disso, algumas questões devem ser levantadas, inerentes às relações médico-paciente. A primeira que se flagra é o tato com que todos esses dados - para o médico palavras frias, para o paciente matéria de vida e de morte - devem ser fornecidos. O paciente precisa cuidar da vida que lhe resta, com o máximo de serenidade possível. Ponha-se, portanto, o doutor no canto dele (paciente) para receber essas noticias e para avaliar bem o significado do que está dizendo.
Outra dificuldade que se surpreende guarda relação com a mania numérica ou estatística, de caráter mecanicista e oriunda de uma espécie de burrice ou de compreensão imperfeito e reducionista dos fenômenos biológicos. O médico é competido a dizer que o paciente tem três, seis meses, um ano de vida, ou que suas chances de cura são 30, 40, 50% etc. Assume o papel de juiz que sentencia e marca a data da execução, de senhor da vida e da morte. Dito de outro jeito, investe-se de atitude de certeza frente ao que é muitas vezes imperdoável. Que estejam contados os dias do paciente, como se sabe que freqüentemente sucede, não se discute. Contudo, as pedras têm de ser contadas com muito cuidado. Os fenômenos biológicos são, não raramente, imprevisíveis ou de difícil previsão. Demais, o que é tido hoje incurável amanhã poderá não mais sê-lo. E, por isso, esse domínio vê-se pejada de historietas que se recantam de médicos que faleceram antes de seus pacientes para quem tinham previsto pouco tempo de vida e dos que lançaram prognósticos de três, seis meses de sobrevida e reencontraram os pacientes lépidos e faqueiros, dois, cinco, dez anos depois.
Não se trata aqui de generalizações a partir de exceções (secundum quid), erro de diagnóstico, melanoma etc., trata-se do cuidado de elaborar diagnóstico e prognóstico, sem concepções meramente mecânicas, ou fundamentadas predominantemente em dados estatísticos. Trata-se de não propor sentenças olímpicas ou exarar observações que podem, de feito, levar o paciente ao desespero e minar o que lhe sobra de vida.
Outra face da moeda é a falsa esperança que pode ser conferida, diante de fatos não completamente avaliados ou proporcionados por envolvimento emocional piedoso, mais das vezes prejudicial à adequada apreciação de qualquer caso ou quadro. Sem que paire dúvida, restara ao paciente a sua mentira, ao invés de sua verdade, com a qual passará a conviver. Dessa forma, sua verdade é absurda, por falsa. E é aqui que se insere outro reconto de aldeia, o do paciente que propalava, a partir das palavras de seu médico, que era portador de um "cancerzinho de nada".
Pelo meio andará a verdade ou a virtude - simples e medíocre ética aristotélica, tantas vezes gratificante. Pelo meio, pelo comedimento. Pelo uso ponderado, cauteloso, dos termos, que alimentará o paciente de amizade e bastará ao médico e à sua ciência, humanizando a profissão, que é, por suposto, pautada em dados neutrais, indiferentes, e em tabelas frias e números, mas também é arte que brota do coração.
O paciente, leigo ou não, pode não perceber em plenitude o significado real de sua doença ou o caráter ominoso do prognóstico, como em casos de câncer ("furão anão"), e acalentar a esperança secreta de cura, seja pelo uso de suas próprias forças, seja pela possibilidade de o médico estar enganado, seja ainda, se tem posses, através de um tratamento nos Estados Unidos (ultimamente, em Cuba, quando afetar dos por vitiligo). A verdade estabelece residência na esperança. Os mais esclarecidos não andarão isentos dessa tendência, "nada do que é humano (lhes) é estranho". E a esperança os vuinerabiliza, tornando-os susceptíveis a todo tipo de exploração por parte de gente inescrupulosa.
Mesmo assim, ao fim e ao cabo, nessas situações de gravidade, se o paciente volve-se ao mágico, às chamadas alternativas, e às muitas outras tolices que habitam este velho mundo, que o faça sem que se torne alvo de indignação (pela gala ciência) ou de chacota, uma vez que está cuidando de sua vida, só tem uma... e que "há mais coisas entre o céu e a terra...."
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